Internacional

Exemplo internacional, sistema de transporte de Bogotá baseado em BRT enfrenta crise

03/01/2022 - O Globo

Por Ivan Martínez-Vargas

Sistema inspirado em Curitiba que reorganizou capital da Colômbia enfrenta problema de financiamento e superlotação; moradores buscam cada vez mais transporte individual

A superlotação e considerada um dos principais problemas do sistema Transmilenio, inspirado no BRT de Curitiba. Foto Mauricio Leon/ Agência O Globo


Bogotá e São paulo - Eleita com uma plataforma de governo progressista, a atual prefeita de Bogotá, Claudia López, chega à metade do seu mandato neste janeiro tendo como um de seus maiores desafios a crise atual do sistema de mobilidade da metrópole. Primeira mulher eleita para governar a capital da Colômbia, López enfrenta na prefeitura a oposição dos grupos políticos do atual presidente, o conservador Iván Duque, e de Gustavo Petro, candidato de esquerda favorito em todas as pesquisas para a eleição presidencial de maio.

No centro dos problemas de mobilidade na cidade de aproximadamente 7,5milhões de habitantes está a crise do Transmilenio, famoso sistema de BRT (busrapid transport) inaugurado em 2000 pelo então prefeito Enrique Peñalosa. O sistema é o eixo principal do transporte público local e ficou famoso internacionalmente por ter mudado a organização urbanística de Bogotá, com suas estações e ônibus articulados organizados em corredores exclusivos. Nos últimos anos, contudo, tem perdido passageiros e é mal avaliado pela população. O quadro se agravou na pandemia.

Nó do financiamento

Originalmente inspirado no BRT de Curitiba implementado por Jaime Lerner, o Transmilenio foi ampliado sucessivas vezes para dar conta de uma demanda crescente. Hoje, no entanto, seus usuários reclamam de ônibus lotados e têm buscado cada vez mais alternativas de transporte individual. Em 2016, eram 102milhões de passagens vendidas por mês. Quando López assumiu, o patamar era de 87 milhões. Em outubro deste ano, foram 77,5 milhões.

Contexto:

O sistema tem um déficit bilionário causado, segundo seus dirigentes, pela diferença entre a arrecadação com o valor da tarifa e o custo para manter e ampliar a estrutura do sistema público. As passagens hoje custam de 2.300 a2.500 pesos colombianos (R$ 3,27 a R$ 3,55). O rombo estimado neste ano no sistema chega a R$ 3,28 bilhões, atribuído pelo poder público principalmente à queda de demanda acentuada durante as duas primeiras ondas da pandemia. O déficit, no entanto, é histórico, e já vem em rota de piora ano a ano antes da pandemia.

Para salvar o Transmilenio, López passou a injetar mais recursos da prefeitura no sistema, inclusive com o aumento do endividamento, o que lhe rende críticas de economistas e urbanistas. Prestes a chegar à metade de seu mandato, a prefeita tem níveis de popularidade em queda, mas ainda elevados, de cerca de40%.
 
Em defesa da gestão atual, o subgerente técnico do Transmilenio, Nicolás Correal, afirma que a queda de usuários antes da pandemia foi causada pelo crescimento econômico do país e que o sistema deverá melhorar com a entrada em serviço de cerca de 1.200 ônibus e a reforma de 22 estações.

Atraso do metrô

O arquiteto Mario Noriega, ex-professor da Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, é um dos principais críticos do modelo atual de transporte público de Bogotá. Para o colombiano, o BRT da cidade “deixou de ser uma escolha racional de modal e passou a ser uma religião” dos prefeitos da cidade e não atende mais à população.

— O Transmilenio surgiu a partir de recomendações de estudos da agência de cooperação do Japão com urbanistas colombianos e sempre previu mais soluções de longo prazo além do BRT, como a construção de uma linha de metrô que estaria pronta entre 2015 e 2020 e desafogaria a demanda em áreas mais densas — diz.

Os especialistas previam ainda a construção de uma espécie de anel viário para mitigar engarrafamentos e tirar caminhões do centro da cidade, além de sugerir que a política pública de transporte fosse feita de maneira regional, em conjunto com outras cidades da região metropolitana.

— A ideia do Transmilenio era boa inicialmente porque os ônibus são baratos e não requerem grandes intervenções de infraestrutura, mas já não eram suficientes sozinhos desde o início, lotam rapidamente e o sistema se satura com muita rapidez. Bogotá é a nona cidade com maior densidade populacional no mundo, precisa de um sistema de trilhos, mas os prefeitos mantiveram a decisão de investir só em mais ônibus — diz Noriega.

Peñalosa, que foi um crítico da ideia da construção do metrô em sua primeira gestão, levou a cabo o projeto de uma linha em seu segundo governo à frente da cidade, entre 2016 e 2019. A linha, no entanto, só começou a ser construída em agosto deste ano, já na gestão de Claudia López. Será um metrô de superfície com início de operação comercial previsto apenas para 2028.

Para Noriega, a linha chega tarde e deveria ser subterrânea.

— Os prefeitos em Bogotá têm obsessão por obras, mas sem entender as implicações técnicas delas. A linha de metrô tem um desenho que coincide com uma das rotas troncais do Transmilenio e será um trem de superfície que passará por uma região já degradada do Centro, agravando problemas urbanísticos — afirma.

A urbanista Raquel Rolnik, professora da USP, diz que embora o Transmilenio tenha provocado uma transformação urbanística que mudou o modo de circular na cidade de maneira mais organizada, o ideal é que os sistemas integrem diferentes modais.

A escolha do modal depende da densidade de fluxo de passageiros por hora. Um corredor de ônibus tem capacidade maior do que um ônibus, e um veículo leve sobre trilhos, mais que ambos. O metrô subterrâneo é o que tem maior capacidade.

— Um modal não elimina o outro, os bons sistemas de mobilidade são multimodais, têm veículos em trilhos nos eixos de maior circulação, ônibus nos de menor, e incentivo também ao uso da bicicleta — afirma a urbanista.

Já na questão do financiamento, Rolnik critica o modelo baseado em receita de tarifas, também vigente no Brasil.

— Esse modelo não tem parado em pé. Para que o concessionário seja remunerado pela tarifa, tem de ter uma forma de prestar o serviço que necessariamente vai gerar ônibus superlotados. Esse desenho carrega em si anão qualidade e a não eficiência do transporte — diz.

Ela defende o financiamento por meio de fundos públicos cuja arrecadação seja atrelada a impostos sobre carros de passeio, por exemplo.

Rede supera brasileiras

O presidente do Instituto de Arquitetos do Brasil em São Paulo, Fernando Tulio, diz que o BRT de Bogotá se destaca por ter uma extensão de rede que supera as de grandes cidades brasileiras.

— A extensão costuma ser aquém da demanda, mas a cobertura em Bogotá é maior do que de a de capitais brasileiras, como Rio de Janeiro e São Paulo — diz.

A organização do sistema, chamada troncalização, também representou um avanço em relação ao modelo de transporte desorganizado de outras metrópoles latino-americanas, segundo o especialista.

No sistema de Bogotá, a organização se assemelha a uma árvore. A espinha dorsal é formada pelos eixos troncais, grandes corredores exclusivos para ônibus nas avenidas principais. Nesses locais, os ônibus são articulados, de maior capacidade. A cobrança é sempre feita em estações, e não nos ônibus.

Dos bairros aos eixos troncais, há as chamadas rotas alimentadoras, também organizadas.






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